terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Resolução da Executiva Nacional do PSOL sobre negociações com a pré-candidatura de Marina Silva PDF Imprimir E-mail
Executiva Nacional
Secretaria de Comunicação
Sex, 22 de Janeiro de 2010 16:41

- Considerando a resolução do recente Diretório Nacional do PSOL, definindo critérios para as negociações com a pré-candidatura de Marina Silva, e que estes critérios foram encaminhados em reunião da comissão do PSOL junto ao Partido Verde;

- Considerando que entre os critérios está a independência política da candidatura de Marina e a necessidade de enfrentar a polarização conservadora entre PT e PSDB;


- Considerando que para que esta independência se concretize, além da linha geral da campanha nacional, um dos critérios estabelecidos na proposta do PSOL foi a construção de palanques estaduais na disputa eleitoral de 2010 que não fossem ligados a estes dois blocos acima referidos;


- Considerando que o PV estabeleceu uma coligação com o PSDB para as eleições no Rio de Janeiro e que esta política expressa, além de negar a independência dos palanques estaduais, indica uma decisão por não enfrentar a polarização conservadora no plano nacional;


A Executiva Nacional resolve:


- Considerar encerradas as negociações em torno do apoio do PSOL à candidatura do PV à presidência da República;


- Deliberar que o PSOL encaminhará os processos internos de construção de sua candidatura própria à presidência da República, organizando e preparando os debates entre os pré-candidatos nos mecanismos e instâncias partidárias.


Brasília/DF, 21 de janeiro de 2010.

Executiva Nacional do PSOL

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Entre as "leis divinas" e as "leis dos homens", onde ficamos nós, mulheres?


POR UM ESTADO LAICO, QUE GARANTA O DIREITO AO ABORTO SEGURO E GRATUITO PARA AS MULHERES! Leia EDITORIAL das mulheres do Enlace sobre caso do arcebispo de Olinda e Recife, que excomungou os médicos e parentes de uma menina pernambucana de 9 anos que, grávida de gêmeos, teve que abortar.

Ontem, dia 04 de março, às vésperas do Dia Internacional da Mulher, o arcebispo de Olinda e Recife, dom José Cardoso Sobrinho, excomungou os médicos e parentes de uma menina pernambucana de 9 anos que, grávida de gêmeos, teve que abortar.O sacerdote foi a público expor sua indignação, dizer que “as leis dos homens não devem estar acima das leis de Deus”. Isso porque o aborto da pequena foi autorizado pela Justiça “mundana” por cumprir dois requisitos para a legalidade dessa prática: a menina engravidou após ter sido estuprada por seu padrasto, que dela abusava sexualmente desde os 6 anos, e corria risco de morte. Aos olhos da Justiça “divina”, a recomposição da dignidade e da vida dessa criança não deve se sobrepôr a um dogma religioso.Das violências que pode sofrer a mulher, a sexual é das mais doloridas e humilhantes. É, talvez, a que deixa as feridas mais profundas, as mais difíceis de cicatrizar. O corpo é nossa interlocução com o mundo. É ele que nos faz sentir a vida, as dores, os amores e os prazeres que constroem o sujeito que, por sua vez, molda a sociedade. Assim, a submissão forçada do seu âmago, da sua parte mais íntima, é um ataque direto à civilidade, pois afeta de maneira irreparável a construção subjetiva da mulher agredida.
Para entender o efeito disso na sociedade, há de se constatar que a recorrência desse tipo de violência está longe de ser esporádica. Somente na cidade de São Paulo, diariamente, de 10 a 12 mulheres, de todas as idades, dão entrada no Hospital Pérola Byington, na região central, vítimas de violência sexual. As estimativas mostram que três ou quatro casos são de estupro - que, pela “lei dos homens” do Brasil, é configurado apenas quando acontece a penetração do pênis na vagina. Outros tipos de violência sexual são considerados “atentados violentos ao pudor”. A cada semana, pelo menos três mulheres que engravidaram, após serem vítimas desse tipo de crime, fazem aborto legal no hospital. Cerca de 40% das que são submetidas à cirurgia têm entre 10 e 17 anos, segundo dados da instituição. Especialistas estimam que, para cada caso de violência conhecido, entre cinco e seis mulheres guardam segredo.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 70% da mulheres do mundo já foram agredidas ou violadas.Uma criança foi violada, agredida, estuprada durante 3 anos. Seu sofrimento acabou apenas quando seu pequeno corpo esboçou as primeiras manifestações de maturação e fertilidade. Grávida de gêmeos, com seu quadrilzinho estreito e peito apertado ainda sem seios proeminentes, foi diagnosticada com risco de morte. Apesar da óbvia impossibilidade física e da evidente crueldade humana que seria deixar essa criança levar adiante a gravidez não apenas indesejada, mas fruto de uma violação contínua e que a marcará para sempre, um dos “representantes de Deus” no “mundo dos homens” julgou heresia a prática do aborto. Não bastasse todo o sofrimento anterior, essa jovem mulher foi, mais uma vez, vítima do patriarcado e do machismo intrínseco à nossa sociedade, manifestos na reação de dom José.O arcebispo de Olinda e Recife faz a interpretação das “leis divinas” desde o fundo de seu conservadorismo mais extremo. E se pronuncia publicamente, num caso delicado como esse, com a insensibilidade mais profunda que o homem pode carregar. Uma reação que expressa todo o acúmulo da opressão das mulheres.A fala de dom José Cardoso Sobrinho sobre o caso foi asquerosa. Duvidamos que o sentimento de qualquer mulher, ao ouvir suas declarações, tenha sido qualquer um mais nobre que o asco.Repudiamos a reação institucional da Igreja católica, expressa pela fala do arcebispo. Continuaremos na luta pela Legalização do aborto, pelo direito das mulheres de tomarem as decisões sobre seus próprios corpos, pela emancipação feminina. Ao mesmo tempo, manifestamos toda a nossa solidariedade à criança que foi vítima de estupro, à sua família e aos médicos que realizaram o aborto, evitando a morte por gravidez precoce e os traumas irreparáveis (além dos que já ficarão marcados) na vida dessa menina.Seguiremos na luta por nossa liberdade. E, antes de mais nada, EXIGIMOS o fim das crueldades impostas a nós pelo patriarcado, pelo machismo e o conservadorismo.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Entrevista com Daniel Bensaid



Em entrevista paraCarta Maior em sua passagem pelo Brasil, Bensaïd fala sobre a crise do capitalismo e a conjuntura política.

RIO DE JANEIRO - No Brasil para uma série de palestras que acompanham o lançamento de um de seus livros - Os Irredutíveis, teoremas de resistência para o tempo presente (Ed. Boitempo) - o cientista político e filósofo francês Daniel Bensaïd, em entrevista exclusiva à Carta Maior, analisa a crise financeira global e seus possíveis desdobramentos. Durante a conversa, que aconteceu antes da palestra realizada segunda-feira (3) na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), Bensaïd apontou as contradições dos líderes europeus de direita que falam em um “novo acordo de Bretton Woods” e afirmou - ainda sem saber o resultado das eleições - que a liderança dos Estados Unidos sofre um declínio irreversível e que a hegemonia norte-americana só se sustenta atualmente graças ao poderio militar e político do país.

Renomado teórico trotskista, Bensaïd fez também duras críticas à social-democracia européia e apontou a falta de um projeto de esquerda na Europa. O francês afirma não conhecer muito bem a situação da América Latina, mas acredita que os governos de esquerda da região podem constituir uma alternativa local à crise. Ele afirma também que chegou a hora de dizer qual “outro mundo possível” realmente queremos. Leia abaixo a entrevista de Daniel Bensaïd:

Carta Maior – Quais são suas impressões, em linhas gerais, sobre a atual crise financeira mundial? Estamos diante de uma crise terminal do sistema capitalista?

Daniel Bensaïd – O capitalismo não vai acabar sozinho. Esta é uma crise histórica, e não somente uma crise ordinária, como o capitalismo conheceu a cada dez ou quinze anos. Essa crise era também previsível, porque é impossível exigir_ como fazem os acionistas _ um retorno sobre seus investimentos da ordem de quinze por cento ao ano frente a um crescimento que em média, no caso dos países desenvolvidos, é de dois ou três por cento ao ano. Alguns dizem que a crise financeira pode chegar à economia real, o que é uma fórmula um pouco absurda porque as finanças fazem parte da economia, elas não são irreais, efetivamente. Por trás dessa crise financeira já havia uma crise de produção. Ao menos para os países europeus - eu não conheço as estatísticas sobre o Brasil - a divisão do valor agregado entre salário e trabalho se deslocou dez por cento em favor do capital, ou seja, do ganho do capital em detrimento do trabalho, o que provoca uma crise incontrolável. Para continuar a vender - porque se existe o produto é preciso vendê-lo - houve um aumento totalmente louco do crédito, e não somente do crédito hipotecário imobiliário nos Estados Unidos. Também aumentou o crédito ao consumo, o crédito às empresas, etc. A crise, desse ponto de vista, era previsível.

Por outro lado, ela não é simplesmente uma fatalidade, é o resultado de decisões políticas que se acumularam por vinte anos, porque a desregulamentação das bolsas, a livre circulação de capitais, o desenvolvimento dos ganhos do capital não fiscalizados, tudo isso foi precedido por uma série de medidas legislativas tomadas pelos diferentes parlamentos na Inglaterra, na França, na Alemanha, etc. No que concerne à Europa, isso foi sistematizado pelos diferentes tratados da União Européia, de Maastrich em 1992 até o Tratado de Lisboa no ano passado, que codificaram o livre mercado europeu. Portanto, essa era uma crise previsível e ela é muito grave porque é globalizada, esse é seu caráter inédito. Mas, por trás de tudo isso, eu creio que o capitalismo poderá se restabelecer, ele já resistiu a outras crises. O problema é saber a qual preço e quem vai pagar o preço, pois essa é, afinal de contas, uma crise mais profunda. No jargão marxista, podemos dizer que a lei do valor atualmente funciona muito mal. Hoje, não podemos medir pelo tempo do relógio um trabalho social muito complexo, que cada vez mais mobiliza conhecimento acumulado, como não podemos tampouco medir a crise ecológica pela flutuação das bolsas de valores.

CM – A crise ambiental, com o problema do aquecimento global, torna a crise financeira ainda mais grave. Estamos vivendo uma crise da humanidade?

DB – Sim, e a crise ambiental não é um problema qualquer. Quando pensamos nas conseqüências, que virão durante séculos ou talvez milhares de anos, da estocagem de lixo nuclear, da destruição das florestas, da poluição dos oceanos e, agora, das mudanças climáticas, vemos que todos esses problemas não poderão ser controlados simplesmente pelos mecanismos do mercado que, por definição, são mecanismos que arbitram no curto prazo ou de maneira instantânea. Está no centro do que chamamos de organização social a prática de medir toda riqueza, toda relação social, e mesmo a relação da sociedade humana com a natureza, pelo único critério do tempo de trabalho abstrato.

CM – Os países da Europa tomaram a dianteira contra a crise com medidas protecionistas e forte presença do Estado. O presidente da França, Nicolas Sarkozy, afirmou que os países devem caminhar para um novo Bretton Woods. Como o senhor analisa a posição européia?

DB – Existe uma contradição em uma crise como esta. Como a globalização esta aí e é, em parte, irreversível, todo mundo hoje, e mesmo os antigos liberais fanáticos de outrora, pensa que é preciso estabelecer uma regulação e novas regras do jogo. Todo mundo fala de uma regulação em escala mundial, um novo Bretton Woods, ou ao menos em escala continental como, se pegarmos o exemplo da Europa, a criação do Fundo Soberano Europeu. Estas são as intenções. Ao mesmo tempo, dentro de uma crise grave como esta, cada um tenta jogar de forma solitária, e nós observamos desde o início da crise interesses diferentes como, por exemplo, na Alemanha e na Irlanda, que quiseram proteger seus próprios capitais e seus próprios bancos.

É cedo demais para dizer quem vai levar a melhor ou se haverá uma espécie de solidariedade entre capitalistas suficientemente forte para criar mecanismos de controle da crise e de solução para os nossos problemas. Ou ainda, ao contrário, se vamos assistir a um agravamento muito forte da concorrência intercapitalista, interimperialista ou entre os grandes blocos. Uma crise como a atual cria também tendências centrífugas muito fortes.

CM – O senhor acredita que esta crise consolida o declínio dos Estados Unidos como potência hegemônica mundial?

DB – Do ponto de vista econômico, o declínio do império americano começou há muito tempo. Os EUA é o país mais endividado do mundo, que continua a desempenhar um papel hegemônico, em grande parte, por causa do seu poderio militar, que representa 60% dos armamentos e das despesas com armamentos em todo o mundo. E, atualmente, existe um efeito perverso, pois a dívida americana havia sido neutralizada pelo deslocamento de capitais dos países produtores de petróleo e da China aos EUA sob forma de Obrigações do Tesouro, ou seja, em dólares. Se esse capitais se retiram, eles fazem o dólar cair e os EUA perdem de todo jeito. Portanto, do ponto de vista econômico, existe uma espécie de mecanismo que deixa os EUA na condição de refém. Enquanto os EUA mantiver a hegemonia militar, o cenário atual poderá durar, mas a gente vê muito bem hoje, e via mesmo antes da crise, que o euro - ou mesmo o yen, mas, sobretudo o euro - pode se tornar a moeda de reserva no lugar do dólar, que ainda guarda seu papel de moeda de troca internacional muito mais por causa da potência política e militar estadunidense do que por causa da solidez da economia dos Estados Unidos. Por isso, eu creio que hoje o declínio dos EUA é irreversível.

CM – Qual sua avaliação sobre o posicionamento da esquerda frente à crise financeira? O senhor acredita que os governos de esquerda da América Latina podem ter papel importante na busca de soluções para a crise?

DB – Eu não conheço muito bem o contexto da América Latina. Eu não sei qual vai ser, por exemplo, a capacidade da Venezuela se o preço do petróleo continuar a cair, portanto é mesmo possível que os efeitos da crise sejam mais duros para paises como a Bolívia ou a Venezuela do que para o Brasil, que tem uma exportação mais diversificada. Eu penso que a crise se fará sentir também no Brasil, mas talvez menos forte. Agora, se a reação à crise vai começar a partir de um pólo bolivariano ou a partir da tentativa do Banco do Sul para se tornar autônomo em relação ao dólar, se vai ser criada uma solidariedade energética e alimentar entre os países da América Latina, se isso tudo vai avançar ou não, a questão está aqui e a resposta está aqui. Eu não tenho resposta.

CM – E na Europa, existe um projeto da esquerda?

DB – A social-democracia, que é a maior força de esquerda na Europa, vem destruindo metodicamente nos últimos vinte anos os mecanismos do Estado-providência e do Estado de Bem Estar Social.Atualmente, diante da brutalidade da crise, vemos dirigentes do Partido Socialista na França falarem novamente de nacionalização. O que fez Sarkozy não foi em hipótese alguma a nacionalização dos bancos. O que ele fez foi dar aos bancos a segurança do Estado sem nem mesmo solicitar o direito a voto nos conselhos de administração, foi meramente um socorro aos bancos.

Certas vozes de esquerda pedem o relançamento de uma política de aumento dos salários, mas isso exigiria uma política séria em escala européia, porque existe o desafio de fazer em nível europeu o contrário do que fizeram os partidos socialistas nos governos nacionais nos últimos vinte anos, ou seja, reconstruir os serviços públicos europeus, harmonizar a fiscalização européia, desenvolver uma fiscalização fortemente progressiva e retomar o poder de compra. Isso significa destruir todos os tratados sobre os quais foi construída a União Européia desde 1992. Eu não acredito que exista nem a vontade política de fazer isso nem a força social para fazer. Por uma razão, pois, através do processo que atravessou, a social-democracia européia perdeu muito do seu apoio popular. Por outro lado, ela se integrou muito fortemente ao topo, às empresas privadas e às finanças globalizadas. O símbolo disso é a presença de dois social-democratas franceses como homens de confiança do capital à frente da OMC (Dominique Strauss-Khan) e do FMI (Pascal Lamy). Isso resume um pouco a situação.

CM – O economista François Chesnais afirma que esta crise é a primeira etapa de um processo muito longo e que não sabemos como ele vai acabar. O senhor sempre foi um crítico contumaz tanto do capitalismo e da globalização financeira quanto dos regimes socialistas constituídos sob a ótica stalinista. O senhor acredita que a humanidade está preparada para construir uma terceira via?

DB – A terceira via não passa nem pela gestão estatal e burocrática que faliu nos países do Leste da Europa, notadamente na União Soviética, nem pelo liberalismo. Muita gente diz hoje em dia que a crise não foi causada pelo capitalismo em si, mas pelos excessos e abusos cometidos. Não, a crise foi causada fundamentalmente pela própria lógica do capitalismo. Eu acredito que passamos da fase dos slogans simpáticos dos fóruns sociais. Se um outro mundo é possível, chegou a hora de dizer qual. Nós saímos de um século que terminou, sob o meu ponto de vista, com uma derrota histórica das esperanças de emancipação. Nós entramos no século XXI com muito menos ilusão do que nossos ancestrais entraram no século XX, sobretudo os socialistas, que acreditavam no fim das guerras e da exploração.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

O que é a mais-valia? - João Machado

Segundo Marx e Engels, “a história de toda sociedade até nossos dias é a história da luta de classes” (Manifesto Comunista). Destacaram, assim, a importância da divisão em classes para compreensão das diversas formas de organização social.
Na verdade, a divisão da sociedade em classes nem sempre existiu. Em sociedades mais primitivas, a produtividade do trabalho era muito pequena e o trabalho realizado por uma pessoa bastava apenas para viabilizar sua própria subsistência e reprodução (o que inclui a possibilidade de alimentar filhos por algum tempo). Todos os seres humanos eram obrigados a produzir, não havendo divisão de classes na sociedade.
Quando, graças ao avanço das técnicas e das ferramentas de trabalho, a produtividade aumentou e o ser humano pôde produzir mais do que o necessário para sua subsistência e reprodução — ou seja, quando o trabalho começou a gerar um produto excedente —, parte da sociedade passou a não ter mais de “ganhar o pão com o suor do próprio rosto”. Ou seja, tornou-se possível a divisão das sociedades numa classe dominante, proprietária dos meios fundamentais de produção, desobrigada do trabalho para garantir sua subsistência, e numa classe dominada e explorada que, além de viabilizar a sua própria subsistência, trabalha também para a classe dominante e lhe entrega seu produto excedente.
Em diversos tipos de organização social essa divisão se dava de forma transparente. Assim, quando a divisão fundamental da sociedade contrapunha senhores e escravos, era evidente que os escravos trabalhavam (de graça) para os senhores. Do mesmo modo, na época feudal, os camponeses, servos, eram obrigados a trabalhar parte dos dias da semana nas terras dos senhores feudais, sem qualquer pagamento.
Na economia capitalista a divisão da sociedade em classes permanece, mas já não é tão transparente. Se analisarmos atentamente a situação perceberemos que a classe dominante não produz aquilo que consome – vive, por exemplo, dos juros de aplicações financeiras, lucros gerados por empresas nas quais, muitas vezes, os acionistas proprietários não têm participação direta, sequer como administradores ou diretores, ou de aluguéis. Esta classe se mantém pela apropriação do excedente gerado por gente que trabalha e produz. Mas as formas precisas pela quais a transferência deste excedente se faz são complexas, e nem sempre podem ser facilmente percebidas.
No capitalismo, os trabalhadores assalariados são, fundamentalmente, os responsáveis pela produção. Recebem pagamento pelo seu trabalho: o salário. aparentemente realizam uma troca, visto que, ao contrário dos escravos ou dos servos, não trabalham de graça para seus patrões. Mas se isso fosse verdade, não haveria como explicar como vivem os que os que não produzem.
Uma das contribuições fundamentais de Marx para compreender a economia capitalista foi justamente explicar a forma como isto acontece. Ele destacou que o salário não é pagamento pelo valor gerado pelo trabalho. É, isto sim, uma espécie de aluguel da capacidade de trabalho de um trabalhador ou de uma trabalhadora por um período de tempo (por exemplo, por um mês, se o salário é pago mensalmente).
Ora, cabe ao capitalista que contrata os trabalhadores, ou a seus prepostos, garantir que eles produzam um valor maior do que aquele recebido como salário. Isto não é muito difícil: os salários tendem a se fixar no nível em que são apenas aproximadamente suficientes para a subsistência e a reprodução da classe trabalhadora (incluindo sua qualificação); o desenvolvimento da tecnologia tornou possível que cada trabalhador produza um valor bem maior do que este.
Marx chamou de mais-valia a diferença entre o valor adicionado pelos trabalhadores (incorporado às mercadorias produzidas) e o salário que recebem. A mais-valia definida desta maneira é em tudo semelhante ao trabalho gratuito que escravos ou servos entregavam a seus senhores. É uma forma disfarçada de transferência de um excedente para a classe dominante.
A mais-valia é a base para os lucros, os juros das aplicações financeiras e para todas as formas de rendimentos vinculadas à propriedade. A apropriação da mais-valia é o fundamento da divisão das classes sociais no capitalismo.


A teoria do valor e o duplo caráter do trabalho - João Machado

A teoria do valor de Marx constitui um ponto de partida fundamental para a compreensão da economia capitalista. Para desenvolver esta teoria, Marx começou constatando que a mercadoria é a forma elementar da riqueza capitalista. Em seguida, constatou também que a mercadoria tem um duplo caráter.

De um lado, ela é um objeto útil produzido pelo trabalho humano, que satisfaz determinadas necessidades (objetivas ou imaginárias, tanto faz); de outro, ela pode ser trocada por outra mercadoria (vendida para comprar outra mercadoria). Assim, a mercadoria é, simultaneamente, valor de uso (características físicas, utilidade) e valor de troca.

A análise do valor de troca é mais complexa. Primeiro é necessário ver que ele não é algo fortuito. Se uma mesma mercadoria pode ser trocada por várias outras e, logo, tem vários valores de troca distintos, as proporções em que ela se troca pelas distintas mercadorias não são obra do acaso. Têm uma lógica social, uma regularidade. Desta maneira, os valores de troca diversos de uma mesma mercadoria expressam um conteúdo comum. A este conteúdo, expresso pelos valores de troca, Marx chamou de valor da mercadoria.
Como se explica este valor? Como ele é determinado?
Para responder a esta pergunta, Marx começa negando a possibilidade de o valor poder, de alguma maneira, ser derivado do valor de uso, isto é, das características físicas ou da utilidade das mercadorias. Em primeiro lugar, porque quando alguém troca uma mercadoria por outra — por exemplo, uma melancia por uma lâmpada — é justamente porque não quer o valor de uso “melancia” e deseja um valor de uso distinto — no caso, a lâmpada. Os valores de uso não são o que há de comum na troca, mas sim o que é diferente (esta diferença é a razão da troca).
Além disso, e ainda mais importante: para os valores de uso poder ser base do valor, que é um conteúdo comum a diversas mercadorias e que, portanto, precisa ter um caráter igual, homogêneo, deveria haver neles, isto é, nas características físicas ou na utilidade das diversas mercadorias, alguma característica homogênea. É fácil ver que isto não acontece: se tomamos a utilidade, por exemplo, não faz sentido falar numa utilidade “em geral”. Uma coisa é a utilidade da água (serve para ser bebida), outra coisa é a utilidade da lâmpada (serve para iluminar). Não posso beber uma lâmpada nem me iluminar com um copo d’água.
Assim, Marx conclui que a única base possível para o valor é o fato de as mercadorias serem produzidas pelo trabalho humano.
Os próprios trabalhos que produzem mercadorias, no entanto, também diferem de mercadoria para mercadoria: existe um trabalho do agricultor, outro do ferreiro, etc. Neste sentido, Marx se refere ao trabalho concreto, útil. Mas acontece que o trabalho pode ser considerado como “trabalho em geral”, puro gasto de capacidade humana de trabalho, ou seja, como trabalho abstrato.
Não se trata aqui de uma mera maneira de analisar o trabalho: o trabalho abstrato tem existência real. Numa economia mercantil desenvolvida, isto é, numa economia capitalista, eu posso obter uma lâmpada tanto a produzindo eu mesmo, quanto produzindo outra coisa qualquer, e depois a vendendo para comprar a lâmpada. Se há possibilidade generalizada de trocas, o conteúdo concreto do meu trabalho torna-se indiferente. No fundo, o que interessa é apenas medir o gasto de capacidade de trabalho — o que, em última análise, pode ser feito a partir da medida do tempo de trabalho. Ou seja: não há sentido em falar numa “utilidade em geral” que poderia ser a explicação para o valor das mercadorias, mas há sentido em falar de “trabalho em geral”, trabalho abstrato, como base para o valor das mercadorias.
Assim, se a mercadoria tem um duplo caráter — valor de uso e valor, o trabalho que produz mercadorias tem também um duplo caráter — trabalho concreto, útil (base do valor de uso) e trabalho abstrato (base do valor).
A medida do trabalho pelo tempo exige, naturalmente, um cuidado: o que interessa é o tempo médio, socialmente determinado — o tempo de trabalho socialmente necessário. É a partir dele que o valor das mercadorias é determinado.